Aconteceu duas vezes: ontem e hoje. Ontem estava chegando em casa e no caminho passei por minha mãe sem perceber e continuei andando até vê-la rir. Hoje sentei no banco do ônibus depois da faculdade e vim a viagem toda com meus pensamentos sem olhar diretamente para ninguém. Quando saí para dar passagem à moça que estava sentada ao meu lado percebi que havia estudando com ela. Nos falamos e ela se foi.
Eu confesso que sou desligada. É até engraçado falar isso, mas geralmente eu sou outra pessoa quando ando nos ônibus, quando estou na rua e muitas vezes quando vou de um bloco ao outro na universidade: fico de cara amarrada, fechada, de poucos amigos.
Desde criança minha mãe me dava ordens para que eu andasse na rua sem dar informação para ninguém, cm uma roupa decente e segurando a bolsa para frente. "Com esse perigo, minha filha..." É mãe, com esse perigo eu deixei até de te ver na rua por simplesmente não tentar te encarar. Afinal, o meu medo todo é sair por aí com uma roupa desrespeitosa e, numa sociedade que tem a cultura do estupro, conseguir um assovio, um "gostosa" ou um secamento que seca a alma. Esse é o meu medo hoje em dia. Não é nem o ladrão pegar meu celular, não é ele roubar os livros, não é nada disso. Todo o medo que tenho dentro de mim é um dia ser estuprada e essa culpa cair sobre mim.
Ano passado o Ipea fez uma pesquisa que concluiu que mais de 63% dos brasileiros concordavam com essa frase: “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Embora essa pesquisa tenha erros básicos de qualquer pesquisa, foi um alarme para mim e para todas aquelas mulheres que saem de suas casas com suas roupas (curtas ou não) para irem estudar ou trabalhar, ou se divertir também. Essa cultura do estupro no Brasil é uma ideia de que se a mulher tem decote, se a mulher usa uma saia curta, ela procurou. Já não basta todo o problema que é envolvido com o estupro, a mulher ainda é a culpada por uma barbaridade como essa.
Mas eu vou mais além.
Quando um cara quer estuprar uma mulher, ele sai de casa com um intuito de estuprar. Ele pode estuprar uma criança, pode estuprar uma idosa ou uma mulher mais jovem. Ele não se importa com o cabelo, ele não se importa com as unhas, ele não se importa se o sapato dela é importado e de marca. Ele não se importa se ela está de roupa curta ou longa. Ele apenas se importa se ela é mulher e se ela mostra algum tipo de vulnerabilidade, e nem isso eu posso garantir, afinal, a pessoa ser vulnerável não quer dizer fraca.
Saiu também, recentemente, uma matéria na BBC uma entrevista com um indiano que foi condenado à morte por estuprar e matar uma mulher de 23 anos dentro de um ônibus. Ela ia assistir um filme com um amigo e foi abordada por seis homens que espancaram seu amigo e a estupraram. Eles também a agrediram com um instrumento de ferro depois do ato. Ela morreu devido aos ferimentos internos.
Segundo o motorista do ônibus, a mulher é a culpada pelo estupro. Afinal, uma mulher decente não sairia a noite para bares ou shows com roupas indecentes. E também o serviço de casa é feito para ela, ela tem muita coisa a fazer em casa. Ele também falou que quando uma moça está sendo estuprada não é para reagir pois depois eles irão embora sem deixar mais "problemas".
Durante a entrevista ele também tinha um sorriso na boca e disse que ela era uma mendiga e que a "vida dela não tinha valor".
Depois de ler a entrevista com o acusado e os advogados, fiquei com a sensação de nojo de toda uma sociedade baseada no homem desde o início dos tempos. As mulheres sempre foram destituídas de direitos e apenas tinham deveres. Não precisamos voltar muito nos anos aqui no Brasil. 50 ou 40 anos atrás, a mulher era considerada nada, sem direito de voz, sem direito de dignidade (sim, a verdadeira dignidade), usar roupa curta era o fim, estudar? Nem pensar, tem que ser uma moça prendada e casar cedo para o marido assumir. A gente pensa que na Índia eles tem um pensamento bem ridículo sobre a mulher, mas aqui no Brasil ainda temos muitos problemas sociais sim. Ouço muito "Ah, homem bêbado é feio, mas mulher é pior. Ah, homem beijar homem é feio, mas mulher beijar mulher é inadmissível. Ah, homem transar antes do casamento ta tudo bem, ta tudo bom. Homem ficar com fulana e ciclana ao mesmo tempo é legal, é divertido, ele ta curtindo a vida. Mulher? Mulher tem que se dar respeito. Ah, a culpa da mulher estar grávida é dela, quem manda não se prevenir? Quem manda não se guardar para o casamento? Agora o Ciclano se lasca pois ela deu o golpe nele."
Eu sou mulher, eu nasci mulher e morrerei mulher. Eu sei o que é andar na rua com medo do que possa vir a seguir. Mas mesmo assim não posso ficar a mercê de uma sociedade que acha que roupa curta é motivo de um estupro. Eu sempre disse e sempre direi: a culpa do estupro é do estuprador. A culpa de verdade de todas essas atrocidades que vem acontecendo não é de uma saia ou vestido curto, não é de um vestido, não é da mulher sair onze horas da faculdade, não é ela estar aproveitando a noite com os amigos. A culpa é da sociedade que sempre acha que tem de culpar o mais vulnerável em todas essas coisas. Sou a favor da liberdade de expressão e de pesamento, mas nunca deixarei que um pensamento desumano de que somos culpadas por todas essas mazelas, como o estupro, vingue no coração das minhas filhas ou filhos. E quem sabe assim farei diferente do que fez minha mãe comigo e diga: "Filha, o corpo é seu." e não "Se dê respeito." E quem sabe um dia eu veja um pai falar que o corpo da garota é dela e merece respeito.
Se ser feminista é lutar pelo Direito de total liberdade para que as mulheres tenham o Direito de escolher o que querem, eu sou completamente a favor.
Links Úteis:
Matéria da BBC
Pesquisa Ipea retificada


Nenhum comentário:
Postar um comentário